STF se despede de seu “Doutor Constituição”

thomas Scholze
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Na mesma semana em que a Constituição brasileira completa 32 anos de sua promulgação, o ministro Celso de Mello se despede de sua cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF) após 31 anos dedicados à mais alta corte do Judiciário brasileiro.

A coincidência de datas não pode ser deixada de lado: Celso de Mello passou a ser ministro do STF por indicação de José Sarney em agosto de 1989, época em que o país se adaptava à Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988. Por esse e outros motivos, o ministro é tido, entre os vivos, como o mais próximo do que Ulysses Guimarães chegou a ser, uma espécie de “Doutor Constituição”.

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A aposentadoria, antecipada por motivos de saúde, gera comoção porque sua postura e forma de trabalhar marcaram julgamentos importantes na história do país. “O ministro Celso de Mello, em sua atuação de três décadas no Supremo, sintetizou as virtudes que um grande magistrado deve ter. Autor de decisões históricas e votos memoráveis, sempre trata os interlocutores com fineza e respeito, além de ser firme defensor da moralidade administrativa, das minorias e da liberdade de expressão. Deixa para quem fica no STF uma herança valiosa, que vai inspirar e direcionar os trabalhos por muitos anos”, definiu o ministro Luís Roberto Barroso à coluna.

Comprometido com a Constituição e se mantendo distante dos atritos políticos, Celso de Mello construiu uma imagem de defensor dos direitos fundamentais, da liberdade de gênero, manteve uma postura estável em relação à prisão após condenação em segunda instância ao longo dos anos e foi voto decisivo em temas importantes nas mais de três décadas de carreira no STF.

Em 2011, o Supremo reconheceu, por unanimidade, a união estável homoafetiva como entidade familiar. Na ocasião, Celso de Mello afirmou em seu voto que ninguém pode ser privado de direitos por motivo de sua orientação sexual. O “Doutor Constituição” usou a Carta Magna para justificar seu voto ao dizer que “ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República”.

“A qualificação da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que presentes, quanto a ela, os mesmos requisitos inerentes à união estável constituída por pessoas de gêneros distintos, representará o reconhecimento de que as conjugalidades homoafetivas, por repousarem a sua existência nos vínculos de solidariedade, de amor e de projetos de vida em comum, hão de merecer o integral amparo do Estado, que lhes deve dispensar, por tal razão, o mesmo tratamento atribuído às uniões estáveis heterossexuais”, escreveu em seu voto.

Em 2019, Celso de Mello foi o relator da ação que julgou a omissão do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. Na época, além dele, os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo até que o Congresso edite lei sobre a matéria.

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Em seu voto, Celso de Mello defendeu os direitos dos grupos LGBT, engrandeceu a Constituição e destacou que o STF não se curva a pressões sociais. “É por isso que se pode proclamar que o Supremo Tribunal Federal desempenha as suas funções institucionais e exerce a jurisdição que lhe é inerente de modo compatível com os estritos limites que lhe traçou a própria Constituição, pois esta Corte Suprema não tolera a prepotência dos governantes, não admite os excessos e abusos que emanam de qualquer esfera dos poderes”, afirmou o ministro.

Em relação à possibilidade da decretação de prisão após condenação em segunda instância, Celso de Mello sempre manteve a mesma postura nos julgamentos realizados pelo STF ao longo dos anos: é a favor da presunção de inocência e contra a execução antecipada da pena. No último julgamento sobre o tema, em 2019, Celso de Mello mais uma vez defendeu o cumprimento às leis e ressaltou que as manifestações da opinião pública não devem contaminar as decisões do Poder Judiciário.

“Os julgamentos do Poder Judiciário não podem se deixar contaminar qualquer que seja o sentido pretendido por juízos paralelos, resultantes de manifestações da opinião pública que objetivem condicionar o pronunciamento de magistrados e tribunais”, destacou.

Em outra atuação importante, dessa vez em 2020, o ministro Celso de Mello autorizou a divulgação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril realizada no Palácio do Planalto. As cenas mostraram, segundo o ex-ministro Sergio Moro, que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir nas decisões sobre o comando da Polícia Federal. Ao decidir pela liberação de acesso ao vídeo, o “Doutor Constituição” voltou a reforçar o respeito à Carta.

“Neste singular momento em que o Brasil, situando-se entre o seu passado e o seu futuro, enfrenta gravíssimos desafios, parece-me essencial reafirmar aos cidadãos de nosso País que esta Corte Suprema, atenta à sua alta responsabilidade institucional, não transigirá nem renunciará ao desempenho isento e impessoal da jurisdição, fazendo sempre prevalecer os valores fundantes da ordem democrática e prestando incondicional reverência ao primado da Constituição, ao império das leis e à superioridade ético-jurídica das ideias que informam e animam o espírito da República”.

Para o jornalista Felipe Recondo, autor do livro Os Onze, que conta os bastidores e crises do Supremo, o ministro Celso de Mello deu substância a um posto que antes era essencialmente cerimonial. “Ele deu funções, corpo e forma para o posto de decano. Olhando para o passado, pode-se arriscar dizer que foi o primeiro ministro verdadeiramente a exercer o decanato – o ministro Moreira Alves sempre foi uma liderança no tribunal, mas não por ser o mais antigo. E olhando para o futuro, é difícil enxergar quem reúna características que possam, de alguma maneira, unir e liderar o tribunal em momentos delicados institucionalmente”, afirma.

O jornalista acredita que, ao longo de mais de três décadas no Supremo, o ministro Celso de Mello manteve-se coerente com suas posições, mas algumas delas tiveram de ser repisadas em momentos e fatos polêmicos. “Para citar apenas dois casos: o ministro sempre votou contra a execução antecipada da pena – e manteve sua posição quando o STF julgou o habeas corpus do ex-presidente Lula; e sempre se manifestou pela impossibilidade de autoridades investigadas prestarem depoimento por escrito – assim como fez no caso de Jair Bolsonaro. Apesar da coerência, acabou sendo criticado injustamente por suas posições”.

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