“Faltou solidariedade”, diz chef que viu restaurante naufragar na crise

thomas Scholze
thomas Scholze

O ministro Paulo Guedes frequentava o meu restaurante fazia anos. Adorava comer da nossa carne-seca e do pão de queijo. Pelo menos uma vez por semana, antes de se mudar para Brasília, fazia questão de passar no O Navegador. Mas agora, infelizmente, acabou. Eu já sabia que ia ter de fechar. Ainda assim, aguardei políticas públicas voltadas para a situação das micros e pequenas empresas, muitas delas familiares, que representam o sonho de ser dono do próprio negócio. Mas não teve sequer uma declaração, um ato de simpatia ou de solidariedade por parte do governo. Nada disso. Chorei muito. Conversei com várias amigas. Tentei. Ofereci O Navegador de presente ao Clube Naval, do qual eu era locatária. Eu iria passar o ponto de porteira fechada, com um restaurante desenvolvido, uma equipe muito bem treinada, cardápio e fornecedores azeitados, todo o maquinário. Era uma proposta, a meu ver, irrecusável. Mas recusaram. E eu fiquei desesperada. Até veio um programa de ajuda aos funcionários, o que retardou um pouco as rescisões pelo país logo nos primeiros meses da pandemia, sem o qual a situação teria sido um desastre. Mas para nós não foi suficiente. Depois de três meses de suspensão da jornada e do salário, tínhamos a obrigação de manter o contrato dos funcionários por mais três meses, mesmo com faturamento inexistente. No fim, faltou vontade política para ajudar os empreendedores que de fato precisavam e foram poucos os que conseguiram acesso ao crédito prometido.

Mas não posso reclamar. Diante de toda essa situação caótica, vi que milagres acontecem. Percebendo que eu não conseguiria arcar com todas as dívidas que teria com o fechamento do restaurante, minhas irmãs resolveram me ajudar. Com isso, pude fazer a rescisão dos funcionários da melhor forma possível, com todos os direitos previstos. Foi um momento delicado. O restaurante era fonte de renda não só minha, mas de quinze famílias. O outro milagre foi que uma amiga, a Regina, me estimulou a fazer um leilão dos itens do restaurante. Não tinha ideia de quantas coisas eu tinha lá dentro. Decidi leiloar tudo. O leiloeiro disse que não daria nada. No fim, foi maravilhoso. Consegui levantar 150 000 reais e quitei toda a minha dívida que teria no cadastro Simples até 2026.

O Navegador foi fundado pela minha irmã, Margarida Maria Corção, em 1975, a convite do Clube Naval. Eu estudava design na Inglaterra. Anos após a minha volta, ela me chamou para cuidar da cozinha. Na década de 80, O Navegador estava sempre cheio. O centro do Rio era pulsante. Ainda existia a bolsa de valores. A Petrobras e o BNDES estavam a mil por hora. Os anos se passaram. O cardápio mudou. Implementamos o conceito de slow food em 2001. Eu fiquei fascinada e criei o Instituto Maniva em 2007. Mas, desde 2015, a rentabilidade do setor sumiu. Na década de 90, as margens de lucro dos restaurantes passavam de 30%. Quando eu fechei, o máximo era de 5%. Aplicativos de delivery, que seriam a salvação, têm taxas altíssimas. Não resolvem o problema. Aquilo que o Paulo Guedes disse na reunião interministerial, que o país perderia dinheiro se ajudasse as pequenas empresas, chegou a ser desrespeitoso com os comerciantes, lojistas e donos de restaurantes. Somos os maiores empregadores e geradores do primeiro emprego. Agora, farei um projeto de mestrado para juntar o design à agricultura familiar. Quero estudar para melhorar a comunicação das fazendas rurais. Também pretendo dedicar mais tempo ao projeto de Ecochefs Maniva, um coletivo de cozinheiros a nível nacional. E estou me dedicando à escrita. Quero aproveitar um pouco da vida que não pude ter nos últimos vinte anos, uma vida caseira. Quero ter o prazer de cozinhar para mim mesma.

Depoimento dado a Felipe Mendes

Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708

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