Como a CVC se reformula para sobreviver

thomas Scholze
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A pandemia do novo coronavírus colocou o setor de turismo em xeque. Diante das medidas restritivas adotadas para se evitar a disseminação do vírus, hotéis, pousadas e pontos turísticos se tornaram ambientes evitados. Quase da noite para o dia, a receita de milhares de empresas desse mercado simplesmente desapareceu. Segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, a CNC, os últimos seis meses levaram o setor a registrar o fechamento de 49,9 mil estabelecimentos no país. No mesmo período, foram eliminados 481,3 mil postos de trabalho, de acordo com as estatísticas mais recentes do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Caged – as perdas mais intensas foram sentidas nos segmentos de agências de viagens e de hotéis, pousadas e similares. Embora boa parte das empresas que deixaram de existir sejam de micro e pequeno porte, a pandemia também afetou gigantes consolidados no setor. É o caso da CVC, que se viu forçada a iniciar uma reestruturação do grupo. Na última semana, a KPMG, que audita os balanços da corporação, apontou “existência de incerteza relevante que pode levantar dúvida significativa quanto à capacidade de continuidade operacional da companhia”, o que colocou os papéis da empresa do ramo turístico na mira de especuladores de plantão.

Maior operadora de viagens no cenário doméstico, com presença em quase todos os elos da cadeia, a CVC tem vivido um inferno astral em 2020. A companhia paulista anunciou, ainda antes do vírus se instaurar entre os brasileiros, que encontrara indícios de distorções contábeis em seus últimos balanços financeiros. Recentemente, a empresa anunciou os detalhes dessa depuração. Segundo ela, foram encontrados 362 milhões de reais em erros e distorções contábeis, sendo que 93,8 milhões de reais referem-se ao exercício de 2019, outros 135 milhões de reais dizem respeito às demonstrações de 2018, e mais 133 milhões de reais são pertencentes a exercícios anteriores. Ou seja, a maior parte do impacto teria vindo depois que o fundador da empresa, o empresário Guilherme Paulus, e o fundo americano Carlyle — que chegou a deter mais de 60% de participação — venderam suas ações em 2016. Sem um controlador maior — o Opportunity, maior acionista, aparecia como dono de 13% dos papéis em abril — , os rumos da CVC passaram a ser definidos pela administração. De março de 2013 a novembro de 2019, o presidente da empresa foi Luiz Eduardo Falco, experiente executivo com passagens pela Oi e pela TAM.

Ainda que a divulgação dos indícios de fraude fiscal tenha sido feita pela própria empresa, os investidores não a perdoaram. Desde janeiro, as ações ordinárias da CVC na bolsa de valores de São Paulo, a B3, desvalorizaram-se mais de 60%, passando de 44,71 reais para cerca de 15 reais. Além das suspeitas de manipulação dos números, a paralisação forçada de suas atividades devido à pandemia piorou a situação. Sem uma vacina que se comprove eficaz, o consumidor deve continuar represando os gastos com atividades turísticas. Especialistas estimam que o mercado só volte a registrar indicadores semelhantes ao período pré-pandêmico em 2023. “Ainda vai levar algum tempo para que as famílias se sintam seguras do ponto de vista sanitário e econômico para que retomem o nível anterior de gastos com turismo”, diz Fabio Bentes, economista-sênior da CNC. “Hoje, o setor opera com 24% do seu potencial mensal de geração de receita”. Mas tempo é dinheiro, diriam os sábios, e a incerteza no horizonte fez com que a CVC agisse.

Para proteger seu caixa no período de turbulência, a companhia reduziu pela metade a remuneração da diretoria executiva e do conselho de administração entre abril e o fim de junho. Salvo algumas exceções, todos os funcionários tiveram a jornada de trabalho reduzidas ao meio. Além disso, investimentos tidos como não prioritários, como em marketing, foram engavetados. Com isso, os gastos mensais foram reduzidos para uma média mensal de 52 milhões de reais ao longo do segundo trimestre do ano. A corporação ainda iniciou um roteiro de trocas no corpo diretivo, comandadas por Leonel Andrade, ex-CEO da Credicard e do Smiles, que assumiu o grupo de turismo em abril.

As mudanças dão sinais dos próximos passos da empresa. A CVC trouxe Eliane Lapa, com experiência na área jurídica, para a direção de governança corporativa, com objetivo de reestruturar a área e passar maior credibilidade para investidores e acionistas. Para o atendimento ao consumidor num momento em que a fidelidade será crucial, a companhia contratou Melina Vacopoulos Vidaller, ex-Smiles e Whirpool, como nova diretora de clientes. Outra mudança importante foi a chegada de Tulio Maia Oliveira, ex-Banco Carrefour, Smiles e HSBC. Ele terá a missão de fazer as unidades de negócios virtuais crescerem, cuidando do site da CVC, Submarino Viagens e Almundo Brasil. Embora a companhia tenha reduzido em 56,08% os gastos com conselho de administração, diretoria estatutária e conselho fiscal frente ao ano de 2018, a remuneração prevista para esses cargos é de 30,6 milhões de reais em 2020, o que representa um avanço de 92,9% em relação à temporada anterior.

Há um entendimento de que, apesar da tragédia sanitária e dos impactos no fluxo de caixa da companhia, a pandemia tem sido uma oportunidade para a reestruturação de processos dentro da CVC. “Com a pandemia, a companhia teve de fazer trocas e escolhas difíceis. Nos últimos anos, ela completou várias aquisições e não eliminou duplicidade de cargos. Essa parada pode ser importante para fazer esses ajustes”, diz Daniela Bretthauer, analista da Eleven Financial. Agora, mais do que nunca, a empresa também terá de aprimorar sua operação virtual para se preparar para uma retomada. “A CVC trouxe pessoas para cuidar do relacionamento com o cliente, ajustar as despesas e desenvolver a gestão dos dados. Ela está bastante atrasada em relação a concorrentes como Decolar e Expedia. A empresa comprou a Submarino Viagens, mas não soube trabalhar a base de dados para fazer cross selling“. Recentemente, a companhia fez um impairment — a redução do valor contábil — de sua operação na Argentina, onde os desafios são ainda maiores se comparados ao mercado brasileiro.

Além da digitalização, a empresa terá de enxugar sua operação física e trabalhar melhor a precificação de seus pacotes para retomar a rota da rentabilidade. Isso significa trabalhar num modelo parecido ao oferecido pelas companhias aéreas. Quanto mais próximo da data da viagem, mais caro será o preço para o consumidor. Por outro lado, quem se antecipar poderá garantir o pacote a um valor mais atraente. No primeiro trimestre, o único balanço divulgado referente a 2020, a CVC apresentou um prejuízo líquido preocupante, de 1,15 bilhão de reais. No mesmo período, sua receita líquida das operações no Brasil foi de R$ 239,8 milhões, queda de 38,1% em relação ao primeiro trimestre de 2019. A tendência é que o próximo balanço a ser divulgado, referente ao segundo trimestre, seja ainda pior, pois engloba o período mais delicado da pandemia. “O resultado do primeiro trimestre foi ruim, mas o do segundo será pior. A tendência é que o cenário evolua aos poucos depois disso”, diz Fernando Bresciani, analista da Mirae Asset.

Fundada em 1972, como uma agência de viagens de lazer localizada em Santo André (SP), a companhia foi aos poucos abocanhando concorrentes. A partir de 2015, a CVC iniciou um roteiro agressivo de aquisições. O Submarino Viagens (de venda on-line), a RexturAdvance (que atua no segmento de viagens corporativas), a Experimento Intercâmbio Cultural (que oferta cursos no exterior) e a Visual Turismo (dedicada a nichos como ecoturismo e viagens de lua de mel) são algumas das pernas do maior conglomerado do setor na América Latina. Contudo, é possível que alguns desses modelos de negócios sofram de forma prolongada diante da valorização do dólar — o mercado de intercâmbio deve ser um deles. Fora isso, algo que preocupa é a incerteza das companhias aéreas. A quebra da Avianca Brasil e a recuperação judicial da Latam, por exemplo, prejudicam o mercado, diminuindo rotas e a concorrência de preços das passagens. “A pandemia atrapalhou, mas a empresa está passando um recado de que pode corrigir a rota. Dessa forma, quando o cliente voltar, ela estará preparada para surfar essa onda”, conjectura Daniela, da Eleven Financial. O caminho para alçar novos voos é tortuoso, mas o ajuste no roteiro se faz necessário.

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